Imagem do disco

O disco Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap brasileiro Racionais MC`s, foi lançado em 1997 e marcou a sociedade brasileira de várias formas. Por esse motivo, desde 2019, o álbum passou a fazer parte do rol de obras obrigatórias do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das principais do país.

Para te ajudar, neste artigo, vamos fazer uma análise dos vários contextos que envolvem essa obra (social, político, econômico, religioso e cultural). Vejamos!

Contexto social

Os Racionais são um grupo criado em 1988, formado por quatro integrantes: Mano Brown, Ice Blue (oriundos da Zona Sul da Cidade de São Paulo), KLJ e Edi Rock (vindos da Zona Norte da capital paulista).

O trabalho do grupo emergiu e se concentrou no Capão Redondo. Essa região pobre e favelizada de São Paulo, assim como outras localidades com características similares, surgiu na época do êxodo rural de pessoas do interior do estado de São Paulo e, principalmente, da Região Nordeste. Esse movimento foi marcado pela ocupação irregular de terras.

Essas pessoas vinham para a capital paulista em busca de melhores condições de vida, tentando aproveitar o impulso econômico trazido pelo processo de industrialização.

Esses migrantes foram se estabelecendo em áreas periféricas da cidade, mais afastadas do centro econômico. Como nesses locais quase não havia presença do Estado e de políticas públicas, surge uma espécie de “Estado paralelo”, que é o crime organizado.

Com o crescimento da criminalidade, o Estado começa a chegar a essas regiões, mas somente com a polícia militar, sem se preocupar com a prestação de serviços sociais para a população carente. Ademais, a repressão policial quase sempre atingia indiscriminadamente toda a população local, e não somente os criminosos de fato.

É nesse contexto social, de exclusão e violência, que é produzido o disco Sobrevivendo no Inferno.

Contexto político

No campo político, o Brasil estava em seus primeiros anos de redemocratização, após passar por um período de 21 anos de Ditadura Militar. Uma das heranças desta fase foi uma força policial altamente militarizada e violenta.

Nesse contexto, moradores de localidades periféricas, mesmo com a retomada da Democracia, continuaram a sofrer com práticas do tempo da Ditadura, como toque de recolher, prisões arbitrárias e até tortura.

Nos anos 90, em especial no governo Collor, que tinha um perfil mais reacionário e liberalizante, houve redução dos investimentos em políticas sociais. Com isso, ocorre um recrudescimento da violência policial nessas áreas mais pobres.

Contexto econômico

Os anos 90 foram marcados por políticas de viés mais liberal, com a reforma gerencial do Estado e a ampliação do processo de privatização de empresas públicas. 

Essas medidas tinham como objetivo reduzir o papel do Estado na economia e trazer eficiência na prestação de serviços à população. Com a redução dos gastos sociais, no entanto, percebe-se um aumento também nas ações de repressão contra os moradores da periferia paulista.

Desses eventos de violência,, três em especial serviram de mote para a criação do disco Sobrevivendo no Inferno. Vamos falar um pouco sobre cada um deles.

1) Massacre do Carandiru (1992)

Nesse episódio, com a justificativa de conter uma rebelião, integrantes da Polícia Militar de São Paulo mataram 111 presos da Casa de Detenção do estado, conhecida como Carandiru. Esse acontecimento deu origem à música Diário de um Detento, faixa central do Sobrevivendo no Inferno.

2) Chacina da Candelária (1993)

Esse fato ocorreu no Rio de Janeiro, em uma noite em que um grupo formado por policiais e ex-policiais atirou dezenas de vezes  contra moradores de rua que estavam dormindo perto da Igreja da Candelária. Desses, oito morreram. Os mortos tinham entre 11 e 19 anos de idade.

3) Chacina de Vigário Geral (1993)

Esse crime também aconteceu no Rio de Janeiro. Nesse episódio, agentes encapuzados invadiram a casa de moradores da comunidade de Vigário Geral e mataram 21 pessoas.

Esses três acontecimentos, na visão dos Racionais MC`s, não eram casos isolados, mas sim uma forma de atuação planejada que configuraria uma espécie de genocídio de pessoas, em sua grande maioria negras, das periferias das grandes metrópoles brasileiras.

Contexto religioso

Nos anos 90, era muito comum a associação quase automática da população negra às religiões de matriz africana, como o Candomblé. Contudo, em Sobrevivendo no Inferno, o que se vê são letras marcadas por referências do cristianismo. Isso fica mais claro em músicas como “Gênesis” e “Capítulo 4, versículo 3”.

Nesse sentido, os Racionais conseguiram captar um fenômeno que estava apenas começando na época do lançamento do disco, que era o crescimento das igrejas neopentecostais. A influência dos pastores evangélicos também está muito presente nas composições do álbum.

Impacto cultural e literário 

Segundo o filósofo Francisco Bosco, o trabalho dos Racionais teve o mérito de traduzir em linguagem simples e acessível discussões aprofundadas que aconteciam dentro das universidades.

Dessa forma, Sobrevivendo no Inferno aborda, de diferentes formas, temas como encarceramento em massa, genecídio, abolicionismo penal, desmilitarização da polícia, dependência química, descriminalização das drogas, entre outros. Tudo isso ilustrado por situações costumeiras do dia a dia dos moradores das periferias. 

Além disso, o álbum tinha também um objetivo claro de criar um senso de coletividade entre as comunidades periféricas de São Paulo e do Brasil. Uma espécie de consciência de classe. Isso pode ser percebido em várias músicas, em que o grupo menciona diversas regiões periféricas, com o objetivo de evidenciar os pontos comuns na realidade de todas elas.

O próprio Mano Brown destaca que existia muita rivalidade entre as diferentes comunidades. O disco, segundo o vocalista, contribuiu para criar uma pauta comum e reduzir as disputas internas em prol de um ganho para a periferia como um todo.

De acordo com o sociólogo, Tiaraju D`Andrea, os Racionais ajudaram a criar a consciência do sujeito periférico, ou seja, de um morador que assume sua condição e tem orgulho do lugar de onde ele veio. Antes de Sobrevivendo no Inferno, as periferias eram associadas somente à pobreza e à violência. Com o surgimento do disco, outros conceitos ganham força, como: pertencimento, cultura e resistência.

Outro trunfo do grupo foi reacender o debate sobre o racismo, que ficou encoberto pelo mito da democracia racial, trazido pelo livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre.

Glamourização da criminalidade

Uma das críticas mais recorrentes ao disco é que ele promove a glamourização da criminalidade. Essa visão, contudo, não se confirma. Basta ver que em todas as letras os criminosos acabam se dando mal no final.

O que os Racionais fizeram foi quebrar uma visão dicotomista que, por um lado, entendia que bandido bom é bandido morto e, por outro,  defendia que o criminoso era uma simples vítima da sociedade, sem poder de escolha.

Nas faixas do disco, eles evidenciam que as carências e a ausência do Estado criam sim uma sistemática que permite que o crime organizado atraia os jovens da periferia, mas mostram que existem caminhos e que a criminalidade não é um fenômeno determinista e envolve uma escolha consciente das pessoas.

Nesse sentido, o professor Acauam Oliveira diz que os Racionais assumiram o papel de pastores marginais, que acolhem seus irmãos e buscam guiá-los pelo Vale das Sombras para um futuro melhor.

Literatura periférica

O movimento da literatura periférica (ou literatura marginal) surgiu nos anos de 1970, com um grupo de autores que estavam à margem do mercado literário da época. Eles buscavam subverter os padrões acadêmicos e dar voz às classes menos favorecidas.

Já na década de 1990, o movimento ganha novos contornos e passa a ser representado por um grupo de autores das periferias brasileiras, principalmente de São Paulo. Esses escritores trouxeram elementos do rap e do hip hop para retratar os problemas sociais enfrentados pelos moradores dessas regiões. É nesse contexto que se insere a obra Sobrevivendo no Inferno.

Outros expoentes desse movimento são Carolina Maria de Jesus, Férrez, Sérgio Vaz e Geovani Martins.

Questão

Para fechar o nosso artigo, vamos analisar uma questão sobre o Sobrevivendo no Inferno:

GÊNESIS (INTRO)

Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor

O homem me deu a favela, o crack, a trairagem

As arma, as bebida, as puta

Eu? 

Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática

Um sentimento de revolta

Eu tô tentando sobreviver no inferno

(Racionais Mc’s, Sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 45.)

“Gênesis” é a segunda canção do álbum Sobrevivendo no Inferno. É antecedida pela invocação de uma outra canção, intitulada “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben.

É correto afirmar que as evocações dos elementos religiosos nesse álbum: 

A) Legitimam a violência social a que estão submetidos os pobres.

B) Dificultam a tomada de consciência da população negra.

C) Articulam as esferas ética e estética da experiência humana na poesia.

D) Dissimulam a hipocrisia moral das pessoas religiosas.

Resposta: Letra C

Justificativa: Como vimos no artigo, um dos grandes trunfos dos Racionais foi mesclar diversas referências (bíblicas e acadêmicas) com situações do dia a dia das periferias. Dessa forma, eles buscam articular as esferas éticas (as lições bíblicas) com a estética periférica (pistola, crack, favela) para retratar em linguagem poética as dificuldades da população das periferias.

Comentários das outras alternativas:

  • Letra A: Legitimam a violência social a que estão submetidos os pobres.

Comentário: Como mostramos no artigo, as músicas do disco “Sobrevivendo no Inferno” fazem exatamente o contrário: expõem e contestam a violência social.

  • Letra B: Dificultam a tomada de consciência da população negra.

Comentário: Mais uma vez, trata-se do exato oposto. As canções dos Racionais tinham exatamente o objetivo de gerar uma tomada de consciência da população negra.

  • Letra D: Dissimulam a hipocrisia moral das pessoas religiosas.

Comentário: Como vimos, a religião era vista como base ética pelos Racionais, e não como hipocrisia.

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Este artigo foi baseado na série de vídeos do canal Chavoso da USP.