Bocage: o poeta neoclássico que antecipou o romantismo

Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é uma das figuras mais intrigantes da poesia portuguesa. Conhecido por sua vida tumultuada e produção literária rica em sonetos, ele é considerado um precursor do Romantismo, apesar de sua obra estar formalmente inserida no Neoclassicismo. Neste artigo, exploraremos a biografia, a obra e o impacto de Bocage, além de sua influência na literatura portuguesa.

Também vamos resolver e comentar duas questões de concurso sobre o autor. Confira!

Bocage: vida, obras, estilo literário e questões.

Resumo sobre Bocage

  • Vida Conturbada e Formação: Bocage nasceu em Setúbal em 1765, mostrou talento precoce para poesia, mas viveu uma vida boêmia e instável. Abandonou a vida militar e dedicou-se à poesia em Lisboa, onde ganhou fama pela improvisação poética e vida desregrada.
  • Experiência no Oriente: Enviado a Goa em 1786, Bocage buscava glória como Camões, mas enfrentou decepções, doenças e conflitos. Suas sátiras sobre a decadência do Império Português e o desencanto marcaram sua poesia.
  • Conflitos Literários e Prisão: Ingressou na Nova Arcádia, mas foi expulso por divergências com colegas. Preso em 1797 por ideias subversivas, dedicou-se à tradução de autores clássicos e ao aprofundamento de uma poesia mais pessoal e crítica.
  • Estilo Literário e Legado: Mestre no soneto, Bocage uniu o rigor formal do Neoclassicismo com uma expressividade emocional que antecipou o Romantismo. Sua obra, como Rimas, abordou temas como amor, sofrimento, morte e crítica social.
  • Importância Cultural: Bocage é considerado um poeta de transição entre o Neoclassicismo e o Romantismo, essencial para a literatura portuguesa. Sua poesia e vida tumultuada continuam a inspirar e a ser estudadas, consolidando-o como um ícone cultural.

Vida e Formação

Bocage nasceu em Setúbal, Portugal, em 15 de setembro de 1765, filho de José Luís Soares de Barbosa e Mariana Joaquina Xavier l’Hedois Lustoff du Bocage, de ascendência francesa. Sua família descendia de Gil Hedois du Bocage, um oficial francês que se estabeleceu em Portugal durante a Guerra da Sucessão Espanhola, no início do século XVIII. Esse contexto familiar trazia uma influência cultural rica, o que, possivelmente, moldou em parte sua personalidade inquieta e criativa.

Desde cedo, Bocage demonstrou talento para a poesia, compondo versos ainda na infância. Nesse sentido, a habilidade com as palavras e a memória acima da média fizeram dele um prodígio literário em sua cidade natal, sendo frequentemente elogiado e incentivado por amigos e familiares. Entretanto, essa atenção também o tornou vaidoso e, em certa medida, instável.

Aos 14 anos, deixou a escola e ingressou no 7º Regimento de Infantaria. A vida militar, no entanto, revelou-se monótona para o jovem poeta, que buscava uma existência mais vibrante e significativa. Aos 16 anos, cansado da rotina militar e dos limites impostos pela disciplina, decidiu mudar de caminho e entrou para a Marinha Real Portuguesa.

A Academia Real de Marinha, em Lisboa proporcionou a ele uma nova perspectiva de vida, mas, em vez de se dedicar aos estudos navais, Bocage entregou-se às paixões amorosas, à boemia e às rodas literárias.

Sede da Academia Real da Marinha Portuguesa, onde Bocage serivu.
Sede da Academia Real da Marinha

Durante esse período em Lisboa, Bocage destacou-se por seu talento em improvisar versos, algo que o tornou popular entre jovens aristocratas e intelectuais.

Nesse contexto, o ambiente cosmopolita da capital portuguesa, combinado com sua personalidade carismática, fez dele uma figura admirada, mas também alvo de críticas. Assim, sua vida desregrada e os muitos amores acabaram por distrai-lo das obrigações acadêmicas, embora tenham fornecido material rico para seus primeiros poemas.

Aventuras no Oriente

Em 1786, Bocage foi enviado para Goa como guarda na marinha indiana. Inspirado pelo poeta Luís de Camões, esperava encontrar glória e aventura no Oriente. No entanto, a realidade foi uma desilução: enfrentou intrigas sociais, problemas de saúde e um ambiente cultural que não correspondeu às suas expectativas.

Durante sua estadia, escreveu sonetos satíricos criticando a decadência do Império Português na Ásia, como aqueles dedicados a Afonso de Albuquerque e D. João de Castro. Esses escritos, aliados a rivalidades amorosas, tornaram sua permanência em Goa insustentável. Dessa forma, em 1789, desertou para Macau e, posteriormente, retornou a Lisboa em 1790.

A experiência no Oriente marcou profundamente Bocage, tanto em sua poesia quanto em sua visão de mundo. Desiludido, ele passou a questionar os ideais heroicos propagados pelo Império Português e a expressar, em seus versos, um tom mais cínico e realista. Assim, essa perspectiva, combinada com sua habilidade em satirizar, consolidou sua reputação como um poeta de talento singular.

A Nova Arcádia e os Conflitos Literários

De volta a Portugal, Bocage ingressou, sob o pseudônimo de Elmano Sadino, na Nova Arcádia, uma sociedade literária fundada em 1790. Contudo, sua personalidade polêmica e insatisfeita levou-o a se desentender com os colegas. Como observam os pesquisadores Daniela Godoy e Diego Costa, “a poesia de Bocage adquire um tom pessoal que se contrapõe à impessoalidade que caracterizava a fase arcádica”.

Esse embate resultou em sua expulsão em 1793 e desencadeou uma guerra literária marcada por críticas afiadas e sátiras, que consolidaram sua reputação no meio público.

Embora a Nova Arcádia não tenha produzido muitas obras relevantes, Bocage destacou-se pela intensidade de seus poemas, marcados por temas como o destino, a morte e o amor. Nesse contexto, seus versos transitaram entre as convenções clássicas e a sensibilidade romântica emergente, refletindo um poeta em conflito com as normas de sua época.

Prisão e Traduções

Em 1797, Bocage foi preso sob acusação de disseminar ideias republicanas e ateístas. Durante o tempo na prisão, dedicou-se à tradução de clássicos como Virgílio, Ovidio, Torquato Tasso, Jean Racine e Voltaire.

Essas traduções garantiram-lhe um meio de subsistência após sua libertação. Além disso, em suas obras mais pessoais, é possível identificar o que Godoy e Costa descrevem como o duelo entre “sentimento e razão” no interior do poeta, uma luta que o aproxima das características românticas.

Características Literárias de Bocage

Bocage empregava uma variedade de formas poéticas, mas sua verdadeira vocação se manifesta nos sonetos. Os sonetos de Bocage são notáveis pela expressividade, pelo tom pessoal e pelo uso de uma linguagem vigorosa e, por vezes, violenta, que desafia as convenções do Neoclassicismo.

Sua poesia revela, simultaneamente, uma busca pelo rigor formal e uma expressão emocional intensa, aspectos que antecipam a estética romântica, que viria a dominar o século XIX.

Entre suas principais obras está a coleção Rimas, publicada em três volumes (1791, 1799, 1804). Nessas obras, Bocage demonstra:

  • Habilidade com sonetos: o soneto, com sua estrutura formal rigidamente definida, foi o formato em que Bocage mais se destacou.
  • Improvisação poética: sua capacidade de criar versos espontaneamente tornou-se lendária.
  • Temas profundos e pessoais: Bocage abordou temas como amor, morte, sofrimento e o destino humano.
  • Linguagem expressiva e violenta: uma característica que se destaca em contraste à suavidade esperada no Arcadismo.
  • Críticas sociais e políticas: usou sua poesia como uma ferramenta para satirizar os costumes e as instituições de sua época.

Sua produção poética, apesar de marcada pelo formalismo neoclássico, revela uma angústia e uma subjetividade tão intensas que se aproximam do Romantismo. Dessa forma, Bocage é, portanto, um poeta de transição, navegando entre duas escolas literárias distintas.

Bocage e Luís de Camões

Luís de Camões era notadamente uma das princiapis referências de Bocage. Por isso, na tabela abaixo, listamos as semelhanças e diferenças entre os dois autores:

AspectoLuís de CamõesManuel Maria Barbosa du Bocage
EstiloClássico, com forte influência renascentistaNeoclássico, mas com traços românticos
TemasHeroísmo, amor, exploraçãoAmor, morte, sátira
Experiência no OrienteEnvolvimento ativo na exploraçãoDesilusão e críticas ao império
RelevânciaMaior poeta clássico da literatura portuguesaImportante precursor do Romantismo

Legado de Bocage

Bocage faleceu em Lisboa, em 21 de dezembro de 1805, deixando um legado literário que continua a inspirar gerações. Sua produção poética é uma janela para as tensões sociais e culturais de sua época. Embora formalmente inserido no Neoclassicismo, Bocage rompeu com muitas convenções ao introduzir um tom subjetivo, reflexivo e, por vezes, desesperançoso em seus versos.

Sua poesia, ao oscilar entre o Arcadismo e o Romantismo, reflete um autor de transição, essencial para compreender a evolução da literatura portuguesa. Obras como Rimas são estudadas até hoje por sua riqueza estilística e temática, que incluem críticas à sociedade, celebrações do amor e reflexões sobre a efemeridade da vida.

Nesse contexto, o impacto de Bocage também transcende sua época: ele inspirou gerações posteriores de escritores e poetas que encontraram em sua obra a ponte entre a disciplina formal clássica e a liberdade emocional romântica. Em Portugal, ele se consolidou como um ícone cultural, sendo constantemente lembrado em análises acadêmicas, estudos literários e até mesmo na cultura popular, com representações de sua vida em peças, livros e adaptações modernas.

Impacto Literário de Bocage

Frases Famosas de Bocage

  1. “Meu ser evaporei na lida insana do tropel de paixões, que me arrastava.”
  2. “Nasci para amar, morri de desventura.”
  3. “São coitados os que amam, que amor e desventura andam juntos.”
  4. “Quem não sente o gosto da poesia não merece ser homem.”
  5. “Sou o gênio que luta contra o fado.”

Questões de concurso sobre Bocage

Para fechar este artigo, vamos analisar duas questões sobre Bocage.

Questão 1 – COPESE – UFJF – 2018 – UFJF – Vestibular – 1° – Módulo III – Econômica e Administração

“Retrato próprio”, de Manuel Maria du Bocage

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de face, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno:

Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

(BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Poemas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. p. 130.)

No Texto 3, o poema de Bocage constitui-se num autorretrato, marcado pelas autodescrições física e psicológica. É exemplo de sua descrição psicológica:

a) “Devoto incensador de mil deidades”.
b) “Triste de face, o mesmo de figura”.
c) “Bem servido de pés, meão na altura”.
d) “Nariz alto no meio, e não pequeno”.
e) “Saíram dele mesmo estas verdades”.

Resposta: Letra A

Comentário: A alternativa “A” representa a descrição psicológica de Bocage porque evidencia um traço de sua personalidade: a inconstância emocional e amorosa. O verso, em tom irônico e crítico, refere-se ao hábito do poeta de se apaixonar por diversas mulheres ao mesmo tempo, como se cultuasse múltiplas divindades.

Questão 2 – VUNESP – 2015 – UNIFESP – Prova de Língua Portuguesa e Língua Inglesa

Assinale a alternativa na qual se pode detectar nos versos do poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) uma ruptura com a convenção arcádica do locus amoenus (“lugar aprazível”).

a) “Olha, Marília, as flautas dos pastores
Que bem que soam, como estão cadentes!
Olha o Tejo a sorrir-se! Olha, não sentes
Os Zéfiros brincar por entre flores?”

b) “O ledo passarinho que gorjeia
Da alma exprimindo a cândida ternura,
O rio transparente, que murmura,
E por entre pedrinhas serpenteia:”

c) Se é doce no recente, ameno Estio
Ver tocar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;”

d) “A loira Fílis na estação das flores,
Comigo passeou por este prado
Mil vezes; por sinal, trazia ao lado
As Graças, os Prazeres e os Amores.”

e) “Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!”

Resposta: Letra E

Comentário: A alternativa E representa uma ruptura com a convenção arcádica do locus amoenus, pois substitui a imagem clássica de um “lugar aprazível” – caracterizado por harmonia, luz, natureza idílica e serenidade – por um cenário sombrio, desolado e marcado pelo silêncio opressivo com termos como “feia”, “deserto” e “vedado”.

Referência

GODOY, Daniela Fúrfuro; COSTA, Diego Martins da. Arcadismo e Romantismo na Obra de Manuel Maria Barbosa du Bocage.

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