Qual a importância da gramática no dia a dia?

Para que serve a gramática no dia a dia das pessoas?” Essa é uma pergunta que muitos estudantes de vestibulares e concursos públicos se fazem enquanto estudam para provas que cobram o domínio das normas da língua portuguesa.

Na entrevista a seguir, o professor William Campos da Cruz, autor do livro Tudo converge para o texto, mostra que a gramática não é apenas um conjunto de regras, mas uma ferramenta prática para organizar ideias, comunicar-se com clareza e até mesmo se destacar em situações formais, como as redações e questões discursivas que aparecem nas seleções.

Com sua experiência como tradutor, editor e professor, William explica que conhecer bem a gramática não significa apenas saber responder questões, mas entender como o texto se forma e como ele reflete a intenção de quem escreve. Ele também dá dicas de como integrar os diferentes tópicos da língua de forma prática, ajudando estudantes a superar dificuldades e a se preparar melhor para os desafios dos concursos. Confira a entevista completa!

Entrevista com Wiliam Cruz, do perfil "Gramática na Vida" e autor do livro "Tudo Converge para o Texto".

Tudo converge para o texto

Clube do Português: Seu livro defende que tudo converge para o texto. Você pode aprofundar um pouco mais esse conceito e explicar como esse se relaciona com a ideia de gramática na vida? 

Wiliam Campos da Cruz: Quando digo que tudo converge para o texto, tenho em mente ao menos três níveis de análise. Em tudo quanto falamos ou escrevemos, necessariamente as palavras estão presentes e ordenadas de certa maneira. Isso quer dizer que aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos são inescapáveis. 

Num enunciado simples como “Gostaria de três pãezinhos”, podemos identificar uma combinação de fonemas vocálicos e consonantais; uma combinação de morfemas, como a desinência verbal -ria, o sufixo diminutivo -zinho, a desinência de número -s; uma combinação de sintagmas, como o sujeito desinencial de primeira pessoa, “de três pãezinhos”, que completa o sentido do verbo, a presença obrigatória da preposição para introduzir o complemento verbal, a necessidade de concordância entre o núcleo do sintagma e seu determinante. Este é o nível gramatical da análise

Além deste, também precisamos lembrar das condicionantes discursivas de um texto. O gênero textual, o suporte, o papel dos interlocutores, etc., também exercem grande influência sobre o texto. Pense na situação concreta da interlocução na padaria. A relação é mais ou menos estável. 

Seria muito estranho alguém que, em vez de fazer o seu pedido, começasse simplesmente a conversar de assuntos aleatórios com o atendente. Ali, os papeis sociais são claros: há um cliente e um profissional, e as interlocuções estão mais ou menos circunscritas a essa relação. Seja como for, a própria situação de comunicação influencia o texto que surgirá naquela interlocução concreta. Esse é o nível discursivo.

Por fim, não podemos nos esquecer da intencionalidade autoral. Flannery O’Connor diz que um escritor escreve com sua personalidade inteira. E, bem, todo o nosso estudo, toda a nossa experiência de vida, tudo que vimos, lemos e ouvimos, de algum modo, constitui quem somos, e isso tende a se manifestar em nossos textos. 

No livro, eu cito uma passagem de Gustavo Corção em que ele diz que sua experiência de técnico, que o obrigava a procurar porcas, parafusos e arruelas, a fim de fixar e articular bem as peças de uma máquina, lhe conferiram a paciência necessária para pensar em preposições e conjunções perfeitas para seus textos. Esse é o nível pessoal.

Um texto é resultado de uma intenção pessoal moldada circunstancialmente e materializada por meio de construções morfossintáticas permitidas pelo sistema da língua. Tudo isso converge para o texto.

No título do livro, há também uma alusão literária mais ou menos discreta: Flannery O’Connor, uma de minhas escritoras favoritas, é autora de um livro chamado “Tudo que sobe deve convergir”. O título do meu livro é uma espécie de homenagem a ela.

Três níveis do estudo de gramática em um texto

Gramática na prática

Clube do Português: No livro, você menciona sua trajetória como revisor de textos e professor de gramática. Poderia nos contar um pouco mais sobre como essas experiências influenciaram sua visão sobre a língua portuguesa e o que te motivou a escrever este livro? 

Wiliam Campos da Cruz: Fui para o curso de Letras convencido de que me tornaria professor de português. Na época, ainda não fazia ideia de como funcionava o mercado editorial nem sabia da existência do ofício de revisor de textos. 

O que aconteceu foi o seguinte: ainda na graduação, desempregado, encontrei no site da Catho uma vaga de estágio em revisão de textos. O único requisito era estar cursando a faculdade de Letras. Candidatei-me, fui contratado e um mundo inteiramente novo se abriu para mim.

Nesse trabalho, tive oportunidade de pôr em prática tudo que vinha aprendendo na faculdade. Rastrear relações sintáticas deixou de ser mera abstração ou exercício escolar e passou a ser um método para avaliar se o texto que eu tinha diante dos olhos estava bem pontuado e para conferir se a concordância verbal estava certa. Também aprendi a discernir o nível de intervenção requerido pelo texto conforme o seu gênero textual.

Durante mais de dez anos, lidei diariamente com textos reais, escritos para serem publicados. Pouco a pouco, fui entendendo que texto nenhum nasce pronto e impecável de uma vez por todas. Ao contrário, o texto publicado é resultado de um longo processo, que conta com a contribuição de diversos profissionais. Nesse trabalho, aprendi a olhar para os textos não apenas como são, mas também a vislumbrar o que eles podem ser – em que poderiam ser mais precisos, mais claros, mais concisos…

Um dia, senti que a experiência acumulada no trabalho de revisão me habilitava a falar de língua e de gramática de um modo um pouco diferente do que eu via na internet. Ainda hoje espantam-me as listas de “erros mais comuns” ou “dificuldades da língua portuguesa” propagadas por aí. A maioria delas trata de questões gramaticais ou de inadequações lexicais, o que nem de longe é a maior dificuldade das pessoas que precisam escrever para ser publicadas. 

Dúvidas do tipo “ao encontro de” ou “de encontro a”, “em vez de” ou “ao invés de”, “a” ou “há”, “retificar” ou “ratificar” existem, mas se manifestam de maneira muito pontual. 

A maior dificuldade está na própria organização das ideias e em sua conversão em palavras. Ninguém aprenderá a pontuar bem um texto se não compreender a prosódia da língua e as convenções da língua escrita. E vejo bem pouca gente falar disso.

Meu livro é uma tentativa de falar de questões gramaticais respeitando a inteligência dos leitores. Não tento fazer a gramática parecer mais simples do que é; não tento parecer descolado, legalzão, cheio de graça. O que eu faço é apresentar um caminho de estudos com grau crescente de dificuldade. Minha intenção é que a cada capítulo o leitor aprenda alguma coisa útil e que esse conhecimento seja mobilizado nos capítulos seguintes.

Repertório linguístico

Clube do Português: Como você vê a relação entre a gramática normativa e o uso livre da língua? Acredita que a gramática pode limitar a criatividade ou, pelo contrário, ampliá-la? 

Wiliam Campos da Cruz: Não me canso de repetir: quem domina a língua diz o que quer. Quem não a domina diz apenas o que consegue. Certa vez, revisei um artigo acadêmico no qual a única conjunção adversativa presente era “mas”. Não havia um “porém”, um “contudo”, um “no entanto”. Nada, nada, nada. Era tudo “mas”. 

Decorar uma lista de conjunções apenas para fazer uma prova é de fato uma chatice. No entanto, se entendo que a lista de conjunções adversativas não é apenas um exercício classificatório, mas uma espécie de acervo de recursos linguísticos a que posso recorrer quando precisar expressar ideias opostas, o estudo passa a fazer sentido!

Eu mesmo já me perguntei qual é a utilidade de estudar orações subordinadas desenvolvidas e reduzidas. Cheguei à resposta em meu trabalho como revisor de textos: converter uma oração desenvolvida numa reduzida é um dos recursos à nossa disposição para evitar o excesso de “ques” num mesmo parágrafo. O mesmo vale para a correspondência entre uma passiva sintética e uma analítica: se conheço ambas as construções e sei como converter uma na outra, posso escolher a que for mais adequada à minha necessidade de momento.

Se, a cada linha, deparo com dúvidas a respeito de uma conjugação verbal, da grafia das palavras, da obrigatoriedade da crase, da necessidade de uma vírgula, etc., minha criatividade fica muito prejudicada. 

Quanto mais amplo o nosso repertório linguístico e quanto maior nossa sensibilidade para escolher o registro mais adequado a cada ocasião, mais eficiente será a nossa comunicação. Em meu livro, esforço-me para deixar claro que conhecer a gramática possibilita um domínio consciente da língua – e isso nos deixa livres para escolher como dizer o que queremos dizer.

Qual o papel da gramática na comunicação eficaz?

Desafios no ensino de gramática

Clube do Português: Muitos alunos consideram a gramática uma disciplina árida e difícil. Quais são, na sua opinião, as principais dificuldades no ensino da gramática e como podemos torná-la mais interessante e relevante para os estudantes? 

Wiliam Campos da Cruz: O professor tem um desafio triplo: em primeiro lugar, mostrar que o assunto é importante; em segundo lugar, convencer o aluno de que ele é capaz de aprender; por fim, fazer uma exposição clara do assunto.

Lecionando para adultos, cheguei a uma conclusão contraintuitiva: a pior coisa que alguém pode fazer ao estudar gramática é dedicar-se exclusivamente ao tópico em que tem dificuldade. As divisões da gramática são meramente didáticas. No uso concreto da língua, aspectos fonológicos, morfológicos e sintáticos são mobilizados simultaneamente. Além disso, é necessário compreender a interdependência dos conteúdos.

Separação silábica e identificação da sílaba tônica, por exemplo, são considerados assuntos elementares, coisa de criança, e quase nunca são revisitados. O problema é que é simplesmente impossível compreender as regras de acentuação gráfica sem saber reconhecer uma sílaba tônica, um ditongo ou um hiato.

Certa vez, fui procurado para dar aulas de reforço a um aluno que tinha dificuldade com a sintaxe do período composto. Ao fazer algumas perguntas de sondagem, logo percebi que o problema não estava na classificação das orações subordinadas, mas na própria sintaxe do período simples. E mais: para poder avançar, tive de retomar algumas noções de classes de palavras, mostrar que substantivos exercem funções nucleares, ao passo que artigos e adjetivos são sempre periféricos.

Uma visão abrangente do funcionamento da língua sempre será mais interessante que uma visão fragmentária.

Professor Wiliam Cruz faz lançamento de seu livro "Tudo converge para o texto".

A gramática e as redes socias

Clube do Português: Você tem uma atuação destacada nas redes sociais. Como os estudantes podem utilizar esses meios para complementar os estudos de forma eficiente?

Wiliam Campos da Cruz: Em vez de apenas consumir mais conteúdos relacionados à língua, acho que um caminho mais fértil talvez seja a produção de conteúdo. Explico: no ensino de redação, muitas vezes os alunos são obrigados a escrever para ninguém e de surpresa a respeito de um assunto que não dominam. O único leitor de sua redação é o professor, que o faz por dever de ofício e para avaliá-lo. Isso, por si só, transforma o ato de escrever numa tarefa intimidadora.

As redes sociais, por outro lado, podem servir como um espaço de compartilhamento real de informações e interesses. Se escrevo a respeito de um filme, uma banda ou livro de que gosto, posso encontrar outras pessoas também interessadas naquele assunto e, com isso, estabelecer diálogos verdadeiros. 

Escrever para compartilhar ideias ou impressões sobre o mundo com pessoas que se interessam pelo que tenho a dizer é muito mais motivador do que escrever para ser avaliado.

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